“A palavra é espírito”: desenvolvimento sustentável na visão Guarani
Por Isabella Petry (Internacionalista, antropóloga e gestora cultural) | membro do GT de Comunicação da Década Internacional das Línguas Indígenas)
“Cada palavra que eu digo na língua do colonizador, é uma palavra, um espírito, na língua do meu povo, que adormece.” – Iberê Daniel, povo Guarani Mbyá.
Em tempos de crise climática, urgência ambiental e debates sobre sustentabilidade, uma voz se ergue com uma clareza ancestral: a dos povos originários. Na contramão dos discursos mercadológicos, que frequentemente esvaziam o sentido de termos como “desenvolvimento” e “sustentabilidade”, o pensamento indígena convida a um mergulho mais profundo — interpretando o que a língua-espírito pode nos ensinar.
O encontro “Diálogos Interculturais” realizado no dia 07/04, realizado pelo GT Nacional da Década Internacional das Línguas Indígenas com a UNESCO Brasil reuniu representantes indígenas para debater estratégias de conservação das Reservas da Biosfera.
Iberê Daniel, do povo Guarani Mbyá, aprofundou o debate com uma reflexão poderosa sobre o papel das línguas e saberes ancestrais na construção da preservação da floresta.
Entrevista na íntegra:
“Eu sou Iberê, do povo Guaraní Mbyá.
‘Nhandereko, a maneira de ser do nosso povo, o povo Guarani, ou as maneiras, as muitas maneiras de ser, de pensar, de agir, de sentir, elas só podem se dar em sua plenitude pelo respeito pela língua forte de cada povo. E não há nenhum outro idioma capaz de colocar no seu interior de si mesmo a pluralidade dos universos que é o pensamento de um saber originário, ancestral, que só pode ser dita no próprio idioma. Quando eu toco com a ponta da língua, a língua do colonizador, é um sabor ácido, é uma língua cortante. É uma língua que impõe o apagamento, desde o primeiro momento. Cada palavra que eu digo na língua do colonizador, é uma palavra, um espírito, na língua do meu povo, que adormece.
E mesmo assim, nesse mundo, de tantas pessoas, de tantas culturas, nós temos que saber, da mesma maneira que vieram para os nossos territórios, saber como a gente pensa, como a gente vive, o que a gente come.
Nós viemos fazer isso também. Saber como pensa o colonizador, como ele vive, e que substâncias carregam a sua língua. A língua do colonizador é uma língua bífida. A gente aprendeu durante algum tempo. Que diz uma coisa, mas que pode significar outra coisa. Palavras como ‘des-envolvimento’, como ‘sustentabilidade’. Pode significar uma vida plena, uma vida harmoniosa. Mas pode significar também lona preta. Pode significar paredes amuralhadas. Pode significar o desenvolvimento para poucos. O enriquecimento de poucos. Um discurso para o mercado. Do mercado. Que não encontra ressonância na substância das coisas. As palavras dos povos indígenas, são palavras brotadas do coração.
As palavras do meu povo, nós falamos ‘nhe’eng’. E veja como a tradução reduz. ‘nhe’eng’ é traduzido como palavra. Mas é também espírito. É também o som dos pássaros. É o murmuro do rio. Então não há idioma que possa reduzir os nossos saberes. E colocar (o idioma) como se fosse apenas uma parte dele.
Não há forma de respeitar uma cultura. Se nós não respeitarmos o idioma. Porque a partir dele a gente pensa. E uma palavra é um espírito. ‘ñe’é’. Que é o espírito. Que é a palavra alma. Habita tudo. Não habita só os humanos. Habita as pedras. Habita as montanhas. Habita tudo que vibra. Tudo que vive. Tudo que pousa. E tudo vive. Tudo vibra. Tudo pousa.
O espírito que habita a pedra é nosso parente. Com ele nós aprendemos. Nós aprendemos a paciência das raízes. Nós aprendemos a profundidade das raízes. Nós aprendemos a paciência das pedras. Nós aprendemos o canto dos pássaros. Nós aprendemos a língua do fogo, da chama. Esses idiomas. O colonizador talvez nunca chegue a saber sequer da sua existência. Os povos originários nunca esqueceram. ‘Aguyje’ (obrigado).”
Desenvolvimento que brota da terra
Para Iberê, as palavras que circulam nos fóruns internacionais — “desenvolvimento”, “crescimento”, “sustentabilidade” — precisam ser revisitadas. Sob a ótica indígena, desenvolvimento não pode ser desvinculado do território, da ancestralidade e das relações com os seres visíveis e invisíveis da floresta.
A palavra “sustentabilidade”, por exemplo, para muitos povos originários, só faz sentido se implicar cuidado, continuidade e vida plena para todos — e não apenas para alguns. Quando essa palavra é capturada pelo mercado, segundo Iberê, ela pode ser vazia como uma lona preta ou um discurso de concreto.
A língua como território sagrado
No centro dessa visão está a língua. Mas não apenas como um meio de comunicação, e sim como espírito — um sopro vital que carrega os saberes, as memórias, os rituais, os valores e os modos de existência. No guarani, “nhe’eng” é ao mesmo tempo palavra, alma, som da natureza e presença do sagrado.
Apagar ou negligenciar uma língua indígena, portanto, é mais do que uma violência simbólica — é um ataque ao espírito que sustenta todo um modo de vida.
Caminhos possíveis
O que Iberê nos propõe é mais do que uma crítica: é uma rota de reconexão. Uma chance de rever os significados, escutar com o coração e compreender que não há futuro sustentável possível sem o protagonismo dos povos que cuidam da terra há milênios.
Enquanto os discursos ocidentais tentam quantificar a sustentabilidade, os povos originários nos lembram: tudo que vive vibra. Tudo que vibra, fala. E tudo que fala, ensina.
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